Tudo o que eu tinha no meu bolso, era aquele mesmo pedaço de papel, amassado, surrado, com caprichosos garranchos. A chuva caía pesada, mas eu não me importava. Na verdade, o mundo já não me importava mais. Eu era tudo, e era um nada. Sabia sentir, e não sabia. Mas estava eu, naquele enfadonho campo, olhando para aquela enigmática cerca. Por dois anos passei por aquele mesmo lugar, sem qualquer sinal daquele franzino velho. Nesse dia, mais uma vez em vão, passei pelo mesmo lugar. Porém, não senti a menor vontade de voltar para a casa, e simplesmente vaguei. Vaguei por onde jamais pude perceber. Vaguei até as minhas pernas finalmente padecerem, e meu corpo desidratado, ávido por um copo d'água. Olhei ao meu redor. Aquele lugar me parecia assustadoramente familiar. Era simplesmente a mesma cerca. Rodei em círculos. E estava eu lá, no mesmo lugar, com a mesma chuva, e o mesmo vazio. Decidi então que o melhor que eu podia fazer era voltar para casa. E lá fui no meu caminho, pensando, pensando. Quando cruzei a soleira do portão, ouvi a voz rouca e familiar, que eu tinha ouvido pela primeira vez há dois anos:
- Vejo que o seu semblante ainda é triste.
Virei-me, e me deparei com aquele mesmo velho. Mas não era exatamente o mesmo velho, surrado, sujo. Era o mesmo velho, mas bem vestido. Sua barba não era mais suja, e sim prateada, o que lhe dava um ar de sabedoria. O velho sorria.
- Eu te procurei por todo este tempo - eu disse. Parecia absurdo, mas eu sentia uma pontada de emoção.
- Você ainda é um cego, meu jovem. Eu estive todo tempo ao seu lado. Você que não percebeu isso - disse o velho.
Como tudo o que ele dizia, não entendi. Queria explicações para muitas coisas, mas apenas consegui dizer:
- Eu... não consigo... entender.
- Você vai entender um dia, suponho. Mas é claro que você jamais me encontraria novamente naquela cerca, jovem. Para ser franco, jamais gostei muito de lá. De todos os homens que passaram por lá, você é o único que não teve a alma corrompida, posto que você foi o único que olhou para mim.
O velho tinha razão. Muitos dos meus ditos amigos passavam por ali diariamente. Quando a eles contei do acontecimento, todos zombaram de mim:
- Ele é apenas um velho bêbado, inútil. Fica o dia inteiro cantando e proclamando o fim do mundo.
- Ignore-o, é apenas um mendigo sem qualquer noção da realidade.
Eu sinceramente não concordava com aquela visão. O velho era sábio, e perfeitamente normal, embora misterioso. Com mais coragem, perguntei:
- Quem afinal é o senhor?
Para meu espanto, ele gargalhou. Soltou uma gargalhada alta, forte, pulsante.
- Eu? Por enquanto, apenas um velho. Creio que haverá um momento em que você finalmente saberá quem eu sou, mas devo lhe dizer que não sou eu que direi isso. Você ainda é cego, jovem.
Assenti. Realmente não havia nada o que eu podia fazer a respeito daquilo. Então, peguei o pedaço de papel velho de minha bolsa, e novamente perguntei:
- Este poema, você quem escreveu?
- Claro. Eu já lhe disse. Este pedaço de papel é também um pedaço de mim, e da minha libertação. Infelizmente, jamais consegui concluir esse poema - disse o velho, agora com um ar de desapontamento. Então, prontamente eu disse:
- Eu escrevi mais um verso, espero que você não se importe.
- Me importar? Oras, porque você acha que eu lhe dei este pedaço de papel? Filho, aprenda uma coisa: você não é apenas um corpo falante que vaga pela Terra! Você é a soma de tudo aquilo o que faz com tudo aquilo que fazem de você. Eu também procuro uma resposta, e não a conseguirei jamais sem ninguém. Para ser franco, é você quem vai me dar essa resposta, e agora - disse o velho, num tom severo, mas esperançoso.
Não sabia mais o que falar. Apenas entreguei aquele pedaço de papel ao velho. Eis que ele leu em voz alta:
"E na calada da noite, também me sinto um infeliz
Um vazio profundo que ocupa a minha alma
E o meu coração cada vez mais duro de pedra com verniz
Enquanto cai essa chuva que alenta e acalma
E de todos os mistérios, eu me fiz rei
Da minha vida, eu sei que eu nada sei
E do vazio que preenche minha alma, retirei
Um pedaço de amor que jamais sentirei"
Ao terminar, podia ver o brilho no olhar daquele homem. Então ele simplesmente dobrou o papel, o colocou no bolso e disse:
- Esse é o espírito. Mas ainda tornaremos a nos encontrar. Só lhe peço que não me procure, pois eu lhe acharei quando for a hora, qualquer que seja o lugar.
E antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa, o velho já se achava longe de meu alcance. Caminhou apressado pela chuva, até desaparecer de vista.
Nos dias que se passaram, apreciei melhor a natureza. Andei, andei, andei. Sem sair do lugar.
Apenas andei.
Ass: Marcel Villalobo
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